CARTA AO ABORTISTA-RECREATIVO: ENTÃO SERÁ QUE DEVERIA EU, MEU FILHO OU MEU PAI TERMOS NASCIDO, AFINAL?

(Contém gatilhos: assunto sensível)

08 de Março de 2024

CARTA AO ABORTISTA-RECREATIVO: ENTÃO SERÁ QUE DEVERIA EU, MEU FILHO OU MEU PAI TERMOS NASCIDO, AFINAL?

(Contém gatilhos: assunto sensível)

 

Neste 8 de março, o tema volta a ser a apropriação do útero pela sociedade patriarcal, machista, de modernidade tardia, pseudo-laica porque judaico-cristã. O direito individual e personalíssimo da mulher, direito humano do mais primordial que é seu corpo, vida e poder de decisão ainda, em pleno Século XXI, é tema de debate social, incluindo homens na mesa, por sinal.

E não por acaso homens, geralmente brancos, cis héteros (performance, pois, a homoafetividade hétero é comum e explícita) inclusive “não-monogâmicos” (unilateralmente, porque obrigam a “monogamia” à parceira, né não?), bem alimentados e “religiosos” (leia-se: seguidores de ritos, praticantes nem tanto), enchem a boca para bradar pretensamente a “defesa da vida”, representantes auto-denominados da família de bem, bons costumes e etc., mas que são os primeiros a vigiarem e cobrarem da parceira “extra” se o contraceptivo funcionou e o “objeto” da recreação foi pelo ralo, afinal, quantos indesejados andam por aí sem a paternidade registrada, real ou afetiva?

Para não incorrer no mesmo erro pueril do “macho” típico, permito-me olhar o tema sob a janela do reconhecidamente limitado quarto da masculinidade, e responder a famigerada pergunta... “que bom que sua mãe não abortou né?”. Essa pobre retórica, recorrente, para além de desnudar a ignorância ao tema, a estupidez do reducionismo e a hipocrisia com o qual o abortista-recreativo (esse que “engravida mas não quer”, que cobra a vida alheia, mas termina brevemente a sua própria reprodução) enxerga o mundo, e não enxerga a complexidade do tema que envolve questões raciais, psicossociais, econômicas e de gêneros, pra dizer o mínimo, despertou-me uma quase possível resposta sincera.

Falo eu: não queria ser pai. Tinha convicção disso. Fui convencido, e o único filho deste filho único nasceu. Ambos deveríamos ter nascido? E meu pai? Talvez não, mas nem por isso não somos amados ou perdemos a capacidade de amar (e outros discursos “fofos” mais de privilegiados de barriga cheia, que adoram romantizar suas próprias trajetórias). Sem romantismos, essas mulheres que nos pariram talvez não nos quereriam em suas épocas gestacionais, porque a ausência masculina, ou o que é pior, a presença tóxica masculina, não só não contribuíam com a missão, como prejudicavam a gestação. E depois? O compartilhamento das obrigações, e o afeto? Há feto? A-feto?

Respondo então a pergunta feita: não, talvez não tenha sido “bom” que nossas companheiras, mães e avós tenham nos parido, porque talvez (e nenhum abortista-recreativo tem a “coragem” de perguntar isso às mulheres) nossas gestações não foram desejadas, por inúmeras razões, e essas mulheres foram obrigadas, por igual inúmeros motivos contra suas próprias razões, a manter a indesejada gestação que (outra questão que o abortista-recreativo não vê) não acaba em 9 meses, porque o fruto do (in)desejo, o embrião que vira feto, e o feto que vira um ser humano, há de sobreviver, física e mentalmente sadio (pois não?) depois do não-aborto.

Filhas, mães, companheiras e avós abortam, abortaram e abortarão, por vários motivos e situações, e aqui não se abstrai a dor de tal gesto. Ele, o aborto, existe corriqueira e perenemente entre nós, não passará a existir a partir de agora. E assim a vida humana segue, bares e igrejas cheias, maternidades e cemitérios idem (Farmácias lucram com drogas lícitas, vendendo equilíbrio aos desequilibrados, sono aos insones, despertar aos sonolentos, e por aí vai, e todos seus efeitos nocivamente colaterais). A vida segue, não “normalmente”, porque não há como se normalizar a dor de uma mulher em ter que submeter seu corpo (físico e mental) a esta solução, mesmo que desejada solução à indesejada gravidez. E nem vou mencionar especificamente as mutilações dos corpos e criminalização da mulher (e o útero como “fonte” de mão-de-obra), diante dos horríveis dados, até porque o negacionismo não ouve e não lê, não quer saber (o mesmo negacionismo do abortista-recreativo que diz que seu corpo é seu para não se vacinar e que o corpo da mulher também é seu, para decidir por ela).

Somos os últimos elos de uma desgraçada corrente que nos une pela violência de gênero, e o abuso do poder via violência da mulher pelo homem. Apropriar-se de seu útero, de seu corpo, de sua liberdade, de seus direitos individuais e obrigá-la a uma gestação indesejável (este texto é sobre isso, e não sobre a livre escolha de gestacionar, ser mãe e etc.), faz parte da “coisificação” da mulher, de tratá-la como carne-parideira, de reproduzir, gestacionar e multiplicar este estado de coisas. É mais fácil reproduzir o rebaixamento da mulher e a sua condição (des)humana que tratá-la como igual, ser pensante com sentimentos e livre para decidir sobre... ela mesma, em primeiro lugar. E por penúltimo: se homem engravidasse, como dizem, teria clínica de aborto drive-thru, no bar, quiosque do shopping, e até no vestiário do futebol, convenhamos.

Somos filhos e pais, avós do patriarcado. Somos, no mínimo, copartícipes dessa reprodução do estado de coisas. Ainda é tempo para rompermos com isso, e se não fomos abortados, abortar este estado de coisas para um novo amanhã.

08 de março de 2024

Luiz Fernando Ozawa
OAB/SC 20.838

https://taggo.one/ozawa
(Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais UFMS/UMSA, Doutor em Ciências Jurídicas UCA, Mestre em Gestão de Políticas Públicas UNIVALI, advogado e professor).